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sexta-feira, 20 de março de 2015

EXPERIÊNCIAS DE CHUVA

Nenhum povo possui crendices ou superstições próprias; mas todos têm variantes de superstições e crendices gerais, talvez originadas numa fonte comum, misteriosa e antiquíssima, de onde certamente irradiaram suas primeiras formas, salvo se idênticas condições e idênticas circunstâncias produzem, seja onde for, as mesmas manifestações demopsicológicas. Assim, não se encontra no sertão nordestino nenhuma crendice que não tenha correspondência entre outras gentes, às vezes mesmo extraordinariamente afastadas e às quais unicamente se poderá ligar através de remota e complexa ascendência. A grande preocupação no sertão nordestino é a chuva, sem a qual a vida não é possível. Para saber de antemão se o ano ,vai ser seco, de repiquete, isto é, meio seco, ou chuvoso, fazem-se duas experiências. O sertanejo dá este nome aos seus processos divinatórios. A primeira é a chamada de Santa Luzia. Na véspera do dia consagrado à gloriosa mártir, riscam-se numa tábua ou papelão seis retângulos, correspondendo cada um deles a um mês do ano, de janeiro a junho, época do inverno, coloca-se em cada quadrado uma pedra de sal e expõe-se ao sereno, nessa noite de 12 para 13 de dezembro. Pela manhã, vai-se ver o que aconteceu. Conforme o sal esteja derretido neste ou naquele quadrado, choverá mais ou menos nos meses correspondentes. Há uma razão de ordem prática nesse processo divinatório: a grande sensibilidade do cloreto de sódio ao estado higrométrico da atmosfera. A segunda é considerar o dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, como representando o mês de janeiro, e os seguintes como os outros meses até junho. Se chover ou fizer sol nesses dias, choverá ou haverá seca nos meses correlatos. A importância da chuva para o sertão é tão grande que em toda parte do mundo se diz que um dia é belo, quando faz sol. Ali, pelo contrário, o dia chuvoso é que é belo e quanto mais chuvoso mais lindo. O dia de São José, 19 de março, também se reveste de grande importância para o sertanejo. Precede de 48 horas o equinócio, não sendo rara nele a mudança de tempo. Por isso, se até essa data o inverno se não manifestar, consideram-se perdidas todas as esperanças. Também se afirma que, se a 19 de março amanhecer o dia com céu limpo e sol, ainda haverá inverno, embora atrasado; mas, se amanhecer chovendo, a seca será terrível. Essa crendice veio dos povos do Ocidente europeu através da Península Ibérica e localizou-se no sertão, sofrendo as modificações do ambiente e das devoções peculiares à região e sua gente. Na meteorologia popular européia, quem representa o papel de Santa Luzia e São José é o quase desconhecido São Medardo, cuja festa é a 8 de junho. Os camponeses franceses, belgas, suíços, gascões, saboianos e bávaros acreditam que, se nesse dia fizer sol, fará sol todo o verão; se chover, choverá o verão todo. A diferença das datas nas duas crendices, a sertaneja e a européia, corresponde exatamente à das estações nos dois hemisférios. O matuto coloca sua data nas proximidades do equinócio de março, de cuja força dependem as águas fertilizantes. O campônio europeu põe-na perto, do solstício de junho. Não sei por que se atribui no Nordeste a São José e a Santa Luzia o patronato das chuvas. Reza-se a São José, no fim de todos os terços e novenas, pedindo as chuvas benéficas. Mesmo nas procissões ad petendam pluviam, feitas para obter do céu que a seca não desgrace o sertão, o povo clama: - São José, dai chuva! São José, dai chuva! A razão da escolha de São Medardo para gozar dos mesmos direitos foi dada pelo membro da Academia Francesa Arnault, de acordo com os velhos biógrafos do santo, que foi Bispo de Noyon e de Tournai, no século VI. Uma feita, indo de viagem, caiu forte aguaceiro; mas uma águia baixou do alto céu e o cobriu com as grandes asas protetoras. Arnault, a propósito procura fazer espírito, dizendo admirar-se dele ter o privilégio de molhar os outros somente por ter tido o de milagrosamente se não molhar. A Santo Antônio também se pedem chuvas no sertão, amarrando sua imagem ou pondo-a de cabeça para baixo, como castigo, quando não atende aos rogos. Havia na cidade de Baturité ao pé da serra do mesmo nome, no Ceará, um tal de José Teotônio, que, todos os anos, comemorava as notícias de boas chuvas, soltando foguetes em louvor do glorioso santo de Pádua e Lisboa; porém, se a seca lavrava pelos sertões, pegava sua imagem, amarrava-a na vara dum poderoso rojão e enviava-a, como soía dizer, de volta ao céu. Esse castigo dos santos também não é peculiar ao sertão. Na edição de 1560 do seu Tratado das superstições, narra o clérigo Martinho d’Arles que, havendo seca na Navarra, as gentes do campo se não humilhavam perante seu padroeiro, que era São Pedro. Levavam sua imagem em procissão até a beira do rio, colocavam-na diante da água e bradavam ameaçadoramente algumas vezes seguidas: - São Pedro, socorrei-nos! A imagem continuava, como era de esperar, imóvel e silenciosa. Então, todos os presentes gritavam, encolerizados: - Atiremos São Pedro nágua! Como São Pedro não se movia, nem respondia, empurravam-no para a correnteza líquida, que o carregava. Às vezes, os padres pediam ao povo que esperasse um dia ou dois pelo milagre do santo, dando até cauções para essa espera. Na "Lenda Áurea" de Jacques dc Voragine ou Jac de Voraggio, se conta que um judeu prometia à imagem de São Nicolau dar-lhe uma surra, se não defendesse convenientemente seus bens. (Barroso, Gustavo. Ao som da viola, p.583-585)

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